sábado, 2 de junho de 2012

AFRONTA


                       
Estive cara a cara com meus personagens, e me segurei. Queria rir da cara deles, dizer que sei e que conheço suas vidas, mas me contive, afinal seria como fazer luto por alguém e na verdade foi uma das coisas mais difíceis de minha vida. Uma afronta pensei por vezes. Ouvir algumas estórias conhecidas não implica somente à realização, em cada dia que passa meus personagens vão se aproximando lentamente e quem partiu não vai ser tão lembrado como ontem, nem amanhã, nem depois de amanhã, nem nunca mais. Acho que nunca mais quero falar com meu ajuris.. Ouvi-la, discutir, vê-la beber, ficar rubra de risos e voltar a ficar boa. Essa, sim, é a parte mais complicada de tudo. Ficar amigo de meus personagens não estava no meu script e de repente descubro certa atração de amizade com eles todos.
Em nossa feijoada neste sábado, dia 4 de junho, tive a prova de que eu tenho que me cuidar, ouvir mais, falar menos e continuar o meu trabalho, não posso ser vitima de mim mesmo. A realização de que nunca mais escreverei sobre eles é como sentir, sem ouvi-lo deixa-los pelo caminho. A parte dos haveres pessoais é das que mais custa num momento quase imediato e quase sempre obrigatório após o olhar ou cada palavra ouvida. A escolha da amizade acontece, não é como escolher roupa, que não pode - manda o bom senso - continuar nos armários à espera que aquele ou aquela que a vestia, já não puxará mais do casaco ou do vestido para usá-lo da próxima vez, que nunca mais terá lugar.
Lembro-me que, na sexta ouvi DoNA falar de Flor, que com ironia,sorria pela proibição de estar na feijoada, e eu, esgotado, fui levado para longe (bem longe. Mas nunca é o suficiente) pela minha mente - numa tentativa maternal de me proteger do que não tem proteção possível, de descansar, a cabeça,de atenuar a dor daquela pobres palavras, dos embates diários da ausência de substâncias, de olhares cínicos, de discussões, de mensagens, de mesa em mesa - e na minha cabeça ficou como uma casa cheia de recordações para esvaziar num instante depois. Quis eu ouvir o zum zum daquele casalzinho afamado e conhecido  sozinhos num mesa a mais no canto do bar.
Teimoso. Quis ficar a recordar, a embrulhar o que não pode ser embrulhado, a esvaziar o que ficará sempre cheio. Nesse mês e sobre esse mês, trocamos palavras sobre o que se passa naquele QUINTAL FAVORITO, durante esse período em que preparávamos a feijoada, nem a emoção de Flor convencia DoNA.
Sei que nunca algo foi tão difícil para mim como esta irônica (sim, porque nestas alturas parece que a vida ri de nós, levando-nos aos limites da dor, da incompreensão, da não aceitação e da realização ou da ausência dela) missão de esvaziar sozinho - como quis - no bar, onde a gente se junta, de escolher cada pessoa que pudesse estar na nossa festa. - cada um com tantas palavras, histórias e recordações! E nisto parece que DoNA decidiu o que fazer na cama, e tudo. Quer que Flor fique– com pessoas inseparáveis que seria mais confortante. É assim, o luto. O luto dos olhares, da covardia, dos copos cheios, dos guardanapos, das pessoas. O luto imediato que Flor é forçada a fazer. Tal como uma separação, o luto que fazemos após uma separação de alguém que amamos ou amamos tanto obriga-nos a esvaziar rapidamente a divisão das recordações, dos bons momentos, dos piores momentos, do espaço partilhado numa tentativa de autopreservação. Porque se não esvaziamos - tantas vezes de formas completamente irracionais para os outros, e quantas vezes para nós! - as recordações, são elas que se apropriam de nós, não nos deixam respirar, e como é essencial Dom Serafim continuar a viver. Claro que há quem esvazie mais rapidamente a gaveta das recordações - pelo menos aparentemente, à vista dos outros -, pois talvez essas pessoas sejam as mais susceptíveis de morrerem sufocada pelo que não se pode esquecer num dia, nem meses, nem, às vezes, em anos. São essas pessoas que estavam na feijoada no sábado e não estranharam os que julgam insensíveis e "despachados", que correm maior risco de se afogar na mágoa. Pessoas, como eu, que querem a todo o custo sobreviver às recordações, vir de cima numa atitude de sobrevivência, para não serem puxadas por elas como que apanhadas num remoinho ou numa corrente forte e perigosa. A forma como se vivem diz tudo sobre as pessoas. Sobre a forma como as pessoas lutam para poderem continuar. Mas, só vê quem quer ver.
USHUAIA DEAN, 05 de Junho 2011.

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